Deus Sob Demanda
A transmissão ao vivo está prestes a começar. O tema é polêmico: “A fé na era digital: conhecimento de Deus ou mercado religioso?” O debate reúne Moisés, teólogo e pesquisador em tecnologias na aprendizagem, e Helena, influenciadora cristã conhecida por sua abordagem pragmática da fé.
O chat ferve, um mar de avatares ansiosos e comentários cintilantes. Alguns esperam uma defesa apaixonada das Escrituras, com citações precisas e fervorosas; outros, um embate entre tradição e modernidade, com argumentos afiados e dados estatísticos. Moisés sabe que não será fácil. A era digital transforma como as pessoas lidam com Deus: em vez de buscá-lo em silêncio, com temor e tremor, consomem-no como um fast food espiritual, rápido e sem substância.
A notificação pisca: AO VIVO. Uma sensação estranha toma conta de Moisés, uma mistura de apreensão e determinação.
— Boa noite a todos. Hoje discutiremos um tema complexo — Moisés começa, olhando diretamente para a câmera, sua voz ecoando na sala virtual. — O que acontece quando a fé se torna um produto algorítmico e o conhecimento de Deus deixa de ser prioridade, transformando-se em uma mera conveniência?
Helena sorri, observando Moisés com atenção.
— Moisés, sempre houve um mercado religioso. Desde o Templo em Jerusalém até os grandes movimentos de avivamento, a fé sempre teve uma dimensão econômica, um intercâmbio de valores e crenças.
Ele assente, mas sua expressão permanece séria.
— Mas há uma diferença entre sustentar um ministério genuíno, que busca servir e edificar a comunidade, e vender Deus como um serviço sob demanda, como um aplicativo que promete soluções instantâneas. Hoje, as Escrituras se resumem a hashtags inspiradoras e frases motivacionais nas telas. O discipulado cedeu lugar ao entretenimento e ao culto de personalidades religiosas, como cantores, gurus e místicos. O resultado é um espetáculo vazio de luzes e sons.
O chat explode em uma torrente de mensagens, um caos digital de opiniões.
— Exagero! A internet leva a Palavra a mais pessoas!
— O problema não é a tecnologia, são os corações que se desviaram.
Helena cruza os braços, com um sorriso irônico.
— Você está dizendo que pregações online, devocionais curtos e conferências cristãs são prejudiciais? Que a tecnologia é inimiga da fé?
Moisés respira fundo, buscando a clareza em meio ao turbilhão de ideias.
— Não. O problema não está no meio, mas no propósito. O Salmo 37 nos ensina: “Agrada-te do Senhor, entrega o teu caminho a ele, confia nele e ele tudo fará” (Sl 37, 4-5). Mas o que vemos hoje? Em vez de agradar-se do Senhor, as pessoas querem um Deus que se agrade delas, um gênio da lâmpada digital. Em vez de entregar seus caminhos, exigem que Deus entregue o que pedem, como um delivery de bênçãos. Não confiam, negociam, barganham, determinam. E o “descanso no Senhor” (Sl 37, 7) vira ansiedade por likes e aprovação instantânea.
Helena arqueia a sobrancelha, pensativa.
— Mas como você propõe reverter isso? Como podemos usar a tecnologia a nosso favor?
Moisés projeta um gráfico na tela, com dados e tendências preocupantes.
— Os dados mostram que o interesse por estudos bíblicos profundos, por teologia e história da fé, cai vertiginosamente, enquanto cresce a busca por mensagens motivacionais e experiências sensoriais, como shows e eventos. Abandonamos o conhecimento de Deus. Oseias já advertia: “O meu povo está sendo destruído, pois lhe falta o conhecimento” (Os 4, 6). E esse conhecimento não se resume a frases de efeito ou emojis religiosos.
O chat é tomado por mensagens em caps lock, um clamor digital por respostas.
— MAS O QUE FAZER ENTÃO? (Lc 3, 10; At 2, 37; 16, 30).
— COMO PODEMOS MUDAR ESSE CENÁRIO?
Moisés olha diretamente para a câmera, com um olhar penetrante.
— Voltar ao primordial, aos fundamentos da fé, à leitura das Escrituras, à oração. A fé cristã não é um serviço de conveniência, um app que funciona sob demanda. Ela exige disciplina, estudo, vida de oração, busca constante. Não podemos tratar Deus como um algoritmo que precisa funcionar no nosso tempo, nas nossas expectativas. Deus não é uma mercadoria, mas o Criador, e nós, sua criação. A geração digital se dedicará a buscar a Deus com sinceridade e profundidade, ou continuará somente consumindo-o, como um produto descartável? Boa noite a todos, até o próximo debate.
A pergunta final de Moisés paira densamente como um espectro.
A transmissão termina.
Não é somente uma discussão sobre fé e tecnologia, mas uma batalha pela alma da humanidade, travada no silêncio dos corações, na solidão das telas, na busca incessante por um sentido que transcende o efêmero, o descartável, o virtual.
Em um mundo onde a fé se torna um serviço sob demanda, um produto algorítmico, será que ainda resta espaço para a fé genuína? Ou a ansiedade por likes e aprovação instantânea sufocará essa busca? E, talvez o mais importante, será que a idolatria de personalidades religiosas não se tornará o maior obstáculo para encontrarmos o verdadeiro Deus?