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‘A bateria está quase no final, filha’: o desespero de ficar horas sem contato por causa das enchentes no RS

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Vista da janela da residência da psicóloga Sabrina Zotti , no bairro São Geraldo:

Antes de perder contato por celular com a filha, Thais, na madrugada deste domingo (5/5), a pequena comerciante Elizabeth Vitalino já havia perdido parte significativa do patrimônio acumulado ao longo da vida.

Moradora do bairro de Humaitá, na zona norte de Porto Alegre, uma das mais atingidas pela enchente que assola o Estado, Beth, como é conhecida, não conseguiu chegar à sua loja, no município vizinho de Canoas.

Isolado pela água, o estabelecimento tinha móveis e mercadorias. Desesperada, a lojista não podia imaginar que, horas depois, a dezenas de quilômetros de distância, seria ela própria alcançada pelas águas.

Beth vive em um apartamento térreo no Humaitá, uma antiga área industrial e de residências populares que passou a atrair interesse do mercado imobiliário apesar do risco de alagamentos.

O local fica a dois quilômetros de distância da Arena do Grêmio e a menos de três do Aeroporto Internacional Salgado Filho – o estádio já havia sido tomado pelas águas na sexta-feira (3/5) enquanto o aeroporto, também atingido, deve ficar sem operações nesta semana.

“Todo mundo tirou os carros das garagens já. Ali também vai subir. Vou ali olhar daqui a pouco”, respondeu Beth à filha em um áudio compartilhado com a reportagem.

Beth tinha razão. Em algumas horas, a água já havia entrado na garagem. Mais um pouco, e os carros estavam submersos.

Sem luz, a lojista avisou a filha que deixaria o celular desligado por uma hora para economizar bateria.

“A bateria está quase no final, filha. Aqui, assim, faltam uns três dedinhos para entrar dentro do apartamento a água. Não tem como sair daqui. É uma loucura”, relatou.

E acrescentou:

“Foi tudo embora. Zero. Zero. Zero. Zero.”

Foi a última mensagem. Beth não voltou a aparecer no celular, como tinha anunciado.

Começaram então as horas de desespero em que Thais não tinha notícias da mãe.

Nas redes sociais, a jovem compartilhou uma mensagem de socorro: “Eu preciso de algum número de resgate que funcione, eu preciso tirar minha mãe do apartamento dela no Humaitá. Ela mora no térreo, água já entrou, estou sem o contato dela há horas. Preciso de ajuda”.

Algumas equipes foram contatadas, mas nada.

O paradeiro e o estado de Beth só foram conhecidos às 17h24 do domingo.

Thais ainda não sabia exatamente em que abrigo a mãe estava, mas estava a salvo. Era o bastante para comemorar, contou à reportagem.

“Vejo famílias atravessando a água com cachorros”

Mais ao sul, no bairro São Geraldo, também no Quarto Distrito, a psicóloga Sabrina Zotti, 31 anos, encontrou em um grupo de vizinhos organizado no WhatsApp a dose de segurança e conforto necessária para enfrentar a tragédia.

Moradora de um condomínio na Avenida Polônia, ela decidiu permanecer no local, juntamente com outros moradores, por julgar que dificilmente a água chegaria ao terceiro andar, onde vive.

“A gente começou a construir juntos o que fazer. Conversamos com os vizinhos e com o condomínio. Criaram um grupo de calamidade com moradores que fazem parte do Corpo de Bombeiros, enfermeiros e engenheiros”, relatou.

No sábado, alguns decidiram deixar o prédio. Outros, como Sabrina, optaram por ficar em razão da proximidade da noite e do nível avançado da água.

“A gente está no terceiro andar, temos alimento, água. Estamos com algum acesso ao celular”, afirmou à BBC News Brasil, por mensagem de áudio, na manhã de domingo.

Natural de Encantado, no Vale do Taquari, uma das regiões mais atingidas pelas enchentes dos últimos meses, Sabrina convive desde a infância com efeitos de inundações.

“É uma cidade que sempre teve problemas com enchentes. Infelizmente, cresci vendo famílias e casas serem destruídas por cheias. É muito triste ver essas repetições, sempre com cenários cada vez mais intensos”, desabafou.

Apesar de ter escapado incólume, Sabrina está emocionalmente abalada, e a voz embargada obrigou-a a interromper com frequência o depoimento.

Às vezes, o som de um helicóptero voando baixo ou de pessoas aos gritos nos barcos de resgate eram perceptíveis ao fundo. Da janela, viu cenas que não poderia ter imaginado horas antes.

“Vejo famílias atravessando essa água com cachorros e crianças às costas. Com uma mochilinha ou com nada, só saindo de suas casas. Barcos da Defesa Civil vêm resgatar as pessoas. Esse é um cenário extremamente desolador”, comentou.

Sabrina ressaltou o ânimo propiciado pela união dos moradores.

“A construção dessa rede de apoio foi extremamente importante. Estamos podendo ajudar as pessoas a compartilhar até mesmo a raiva que surge em situações assim, a raiva, o choro”, afirmou. “E também informações de que há ações sendo desenvolvidas, pessoas em condições de ajudar, barcos chegando”, .

Segundo o psicólogo Georges Hilal Jequis, que faz parte de um grupo de profissionais envolvidos na assistência voluntária a pessoas afetadas pela enchente em todo o Estado, a crise instaurada no Rio Grande do Sul exige, além de apoio material, mobilização psíquica para “lidar com o trauma que se instalou diante do caráter inexorável da violência da natureza”.

Para o profissional, as redes sociais têm um papel positivo de conexão num momento em que o poder público não consegue lidar sozinho com a catástrofe. Mais de 70 pessoas morreram, e mais de 100 estão desaparecidas.

A Prefeitura de Porto Alegre estima que 70% da cidade está sem água. O número de desalojados no Estado já ultrapassou os 100 mil.

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