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Espelho Turvo da Alma

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A tela cintilava, um portal para um reino de sombras. Mais um clique, pensei, e a escuridão me engolfaria de novo. Mas algo em mim resistia. José, um homem de e razão, estava preso em uma teia digital que o seduzia e consumia. As imagens, fragmentos de corpos e desejos, se repetiam como um cântico hipnótico. Na penumbra do quarto, o brilho do monitor era a única luz, criando um contraste cruel com a escuridão que se acumulava em seu coração.

— Por que você faz isso? — perguntou uma voz familiar. Sua consciência, insistente, ecoando as palavras de Paulo: “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7, 15-19). José sentiu o peso dessas palavras, como se elas tivessem sido escritas para ele.

— É só um momento — murmurou, mas a mentira soava oca. Ele sabia que não era somente um momento. Era uma batalha constante, uma guerra que se travava em sua mente e em sua alma.

O campo de batalha não era a tela, mas sua própria alma. Quero ser puro, pensou, mas a correnteza me arrasta. As notificações piscavam como iscas de um pescador invisível. Cada toque na tela é um passo para um abismo. Ele se via como um náufrago em um mar de tentações, à deriva, sem forças para lutar.

— Você é mais forte que isso — insistiu a voz. — Lembre-se de quem você é. Lembre-se da luz.

Mas a luz parecia distante, quase apagada. O mundo digital era um labirinto de espelhos, refletindo somente os fragmentos distorcidos de quem ele era. Havia saída? Havia esperança? Será que existe um caminho de volta para a pureza?

Em uma noite de insônia, José encontrou um fórum de pessoas com a mesma luta. Compartilharam dores, falhas, medos. Descobriu que a escuridão não era invencível. Um homem escreveu: “O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele o meu coração confia, nele fui socorrido; por isso, o meu coração exulta” (Sl 28, 7). Aquelas palavras penetraram seu coração, como um bálsamo em uma ferida aberta.

Decidiu lutar. Desinstalou aplicativos, bloqueou sites, buscou ajuda. A batalha foi árdua. Cada tentação resistida era um pequeno raio de luz perfurando a escuridão. Mas o verdadeiro golpe veio em um momento inesperado.

Em uma madrugada de oração, sentiu uma presença. A tela do computador escureceu e se transformou em um espelho. Seu reflexo o olhava, mas não era somente um reflexo. Ele falou:

— Você pensa que luta contra a pornografia, José? Mas sua batalha real é contra si. Você busca validação, poder, fuga. A escuridão lhe oferece tudo isso, por um preço muito alto.

O coração de José disparou. Era isso. Era sempre isso. O desejo era somente um véu, escondendo um vazio mais profundo: orgulho, vaidade, medo da solidão. Será que eu me enganei esse tempo todo?

— Arrependa-se, José — disse o reflexo. — Deixe a luz entrar.

Aquelas palavras o atingiram como um raio. Arrepender-se? Ele achava que já o havia feito tantas vezes, mas e se nunca tivesse sido de verdade? E se, no fundo, ele ainda nutrisse aquele abismo dentro de si? O reflexo começou a se desfazer, mas antes que desaparecesse por completo, sussurrou:

— O que você alimenta cresce. Escolha com sabedoria.

José desligou o computador. Seu peito ainda ardia com a revelação. A batalha não terminava ali, mas uma verdade inegável havia se instalado dentro dele. O que via na tela não era o problema; era somente o sintoma. O verdadeiro inimigo estava dentro dele, em seus anseios, em suas fraquezas.

Amanheceu e a luz dourada do sol atravessou a janela, pintando o quarto com tons de esperança. José pegou sua Bíblia, o toque do livro em suas mãos trazendo um senso de realidade. Abriu-a ao acaso e seus olhos pousaram sobre um versículo: “No passado vocês eram trevas, mas agora são luz no Senhor. Vivam como filhos da luz” (Ef 5, 8). Leu em voz alta, a voz embargada pela emoção. As palavras ressoaram em seu coração, como um sino tocando a verdade. A luz não era somente algo distante, uma vaga promessa num futuro incerto. Ela estava ao seu alcance, pulsante, viva. Mas exigia uma escolha, um corte profundo, uma entrega total. Exigia decisão, entrega, constância. Naquele instante, enquanto o sol nascente dissipava as sombras do quarto, ele finalmente compreendeu: cada escolha, por menor que fosse, era um passo em direção à luz ou à escuridão. E ele, finalmente, estava pronto para escolher.

Levantou-se. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu que a escuridão dentro dele começava a recuar. Um sorriso tímido brotou em seus lábios. A jornada seria longa, mas ele não estava mais sozinho.

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